2024
BNCC Computação: o que o professor precisa aprender para colocá-la em prática?
Juntamente com a infraestrutura, um dos maiores desafios que as redes de ensino enfrentam para colocar a computação no currículo é a formação de professores. Desde outubro do ano passado, é obrigatória a implementação do complemento à BNCC que trata desse tema, conhecido como BNCC Computação.
O documento trata do ensino de computação em três eixos: pensamento computacional, mundo digital e cultura digital. De modo geral, o texto prevê que os estudantes desenvolvam tanto habilidades relacionadas à raciocínio lógico e sistematização de informações quanto aquelas relacionadas ao uso da tecnologia no dia a dia e às suas implicações políticas, éticas e sociais. Para que esse tipo de conteúdo chegue na sala de aula, é preciso formar os professores para o uso das ferramentas digitais, mas também para abordar a temática de modo crítico.
A pandemia de Covid-19 forçou a instalação do ensino remoto em todo o país e o desafio das redes foi garantir que os professores dominassem o primeiro aspecto, mais técnico. Nesse contexto, a rede do Mato Grosso começou a trabalhar na infraestrutura para professores e estudantes e também na formação de docentes. Com o apoio do terceiro setor, o estado implementou oficialmente, em 2022, o Programa de Formação Docente em Competências Digitais
Flavia Manoeli, secretária-adjunta de Gestão de Pessoas da Secretaria de Educação do Mato Grosso, explica que, em primeiro lugar, foi realizada uma avaliação inicial para nivelar os professores em relação aos conhecimentos tecnológicos. “A situação era caótica”, observa ela. Na ocasião, 23,4% dos docentes da rede estavam no nível mais básico, a Exposição, no qual o professor precisa de apoio de terceiros para utilizar os recursos digitais. O nível mínimo recomendado é o 3, chamado de Adaptação, quando o professor usa tecnologia integrada ao planejamento. Esses níveis foram definidos pela rede do Mato Grosso, com ajuda da Fundação Telefônica Vivo, para nortear as estratégias de formação.
No levantamento de 2022, só 4,9% dos docentes estavam no quarto nível, chamado de Integração, quando o professor trabalha com as tecnologias de forma integrada e contextualizada no processo de ensino e aprendizagem. E apenas 0,4% dos deles atingiam o mais alto de cinco níveis, a Transformação, na qual o professor usa as tecnologias de forma inovadora, compartilha com os colegas e realiza projetos colaborativos para além da escola, mostrando-se maduro digitalmente, identificando as tecnologias como ferramentas de transformação social.
Em 2023, um novo levantamento mostrou que dobrou a porcentagem de professores aptos (52,6%), ou seja, classificados entre os níveis 3 a 5, que no ano anterior somavam 25,4%. Agora, com mais professores conseguindo se conectar, Flavia diz que o próximo passo da rede de ensino é trazer modificações para o currículo, englobando habilidades relacionadas à computação. “Primeiro, investimos em formação, software e hardware, para conseguirmos uma base sólida e, então, modificar o currículo”.
A pandemia de Covid-19 também foi o motor para que a rede do Paraná investisse não apenas em formação docente, mas também na implementação de recursos digitais. O estado conta, hoje, com diversas iniciativas, incluindo o Redação Paraná, sistema que auxilia docentes e estudantes com correções automáticas de textos, e o Khanmigo, ferramenta de inteligência artificial da Khan Academy que serve como uma espécie de tutor digital de Matemática para os estudantes.
“Quem tinha vergonha de perguntar em sala pode interagir bastante com a inteligência artificial. A ferramenta facilita tirar dúvidas e proporcionou um avanço considerável na proficiência em Matemática”, conta Lorena Pantaleão, coordenadora de educação digital da Secretaria de Educação do Paraná, sobre o projeto piloto que implementou o Khanmigo no ano passado. Hoje, a rede conta com uma estrutura de formadores em competências digitais: são embaixadores que estabelecem contato mais próximo com os docentes, auxiliando em dúvidas.
Tecnologia promove mudança de formato
A formação sobre ferramentas tecnológicas é essencial para que os professores consigam levar os recursos digitais para a sala de aula. Para implementar a BNCC Computação, porém, é necessário ir além.
“A gente já ensinou muito aos professores como usar a tecnologia de forma pedagógica. O que precisa, agora, é ensinar os professores como os alunos aprendem com essas tecnologias”, afirma Auxiliadora Padilha, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mentora científica da Prática.Edu, uma consultoria em soluções educacionais do polo tecnológico da universidade. “O professor pode estar formado para o uso de uma tecnologia, mas aí chega uma nova e ele vai dizer que não sabe usar. Porque a questão não é usar aquela tecnologia, é entender como as características dos recursos o ajudam a mediar o processo de construção de conhecimento para o aluno”, completa.
Na prática, ao planejar o uso da tecnologia em sala de aula, o professor costuma perceber o quanto ainda recorre ao formato tradicional de ensino. A BNCC já incentiva, desde 2018, a perspectiva de uma aprendizagem mais ativa, colocando o aluno no centro do processo. Com a chegada da BNCC Computação, há um direcionamento forte para esse tipo de ação, deixando mais escancarada a necessidade de mudança.
Em 2017, quando a rede de Sobral (CE) reformulou o currículo de Ciências, implementando o IDEIA (acrônimo para Invenção, Descoberta, Investigação e Aprendizado), Adones Silva passou pelo processo de inserir a perspectiva da computação dentro do componente curricular. Hoje técnico e professor formador de redesenho pedagógico, ele também foi professor de Ciências e Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental no município. Ele relembra que, em formações sobre o novo currículo, os docentes foram orientados a usar metodologias ativas para inserir a tecnologia nas práticas escolares. Em uma aula de laboratório, por exemplo, Adones começava sempre pelo experimento, instigando os estudantes a criarem hipóteses para, então, mostrar as explicações dos livros didáticos.
“A visão desse novo currículo, de certa forma, defende o princípio da sala de aula invertida”, comenta o professor. “No início, sentimos dificuldade, porque somos acostumados a pôr o conteúdo na lousa, esperando que o aluno apresente a dúvida que estamos preparados para responder. Agora, vivemos o processo de escutar o aluno e esperar o tempo dele. Esse novo modelo foi se tornando natural, porque entendemos que não dá para levar a tecnologia para a sala de aula só pela tecnologia em si”, completa.
“A metodologia ativa não é um conceito novo, estamos discutindo o tema há muito tempo. E precisamos avançar, mas os avanços não são rápidos ou simples”, avalia Daniele Dias, professora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro da Sociedade Brasileira de Computação.
William Duarte, professor de Matemática na rede do Paraná, por exemplo, foi reconhecido no estado por ser um dos docentes com bons exemplos de uso da tecnologia, o que o fez receber o convite para implementar o piloto do Khanmigo. O docente percebe que os estudantes prestam mais atenção quando se usa recursos tecnológicos. Esse uso, porém, deve promover que os alunos coloquem a “mão na massa”.
O professor exemplifica: “Em uma aula sobre plano cartesiano com alunos do 7º ano, eu usei a ferramenta Scratch [solução que usa lógica de programação para criar animações, jogos e histórias interativas] para criar um personagem, que a turma utilizou para andar nos eixos X e Y.” Os estudantes deslocaram o personagem em várias direções para se familiarizar com o plano cartesiano e, aproveitando a atenção deles, Duarte acrescentou a parte histórica, falando sobre René Descartes e conceitos ligados ao tema.
“Também gosto de aproximar os exemplos da vivência dos alunos. Quando comento sobre o jogo do Sonic ou do Mario, eles conhecem, e sabem o que é 2D, por exemplo. E aí vou associando isso com a Matemática”, completa.
Pensamento crítico na era digital
Além de se apropriar das ferramentas digitais e das metodologias ativas, é importante, ainda, que os docentes se aprofundem nas discussões políticas, éticas e sociais que envolvem a tecnologia.
“Mais do que nunca, os professores precisam estudar os fundamentos da Ciência da Computação, desplugando-se de uma educação tecnicista, conseguindo entender a importância do tema na formação dos estudantes para um mundo que é altamente digital e tecnológico. Se ele não compreende, como vai formar o aluno para compreender?”, reflete Daniele.
Esse tipo de discussão está diretamente ligada com o eixo “cultura digital” da BNCC Computação, que propõe um olhar mais crítico sobre as tecnologias. O aspecto amarra os anteriores (conhecimento de recursos digitais e uso de metodologias ativas) e faz com que as habilidades do documento cheguem, de fato, às escolas. Para professores que já usam recursos tecnológicos em sala de aula de forma pedagógica, parte do caminho está trilhado. Ir além inclui reconhecer um viés social e crítico sobre a prática.
Segundo Adones, na rede de Sobral é uma premissa usar os recursos digitais tendo em vista tanto o aprendizado quanto as discussões sociais. “Se eu tenho uma máquina cortadora a laser na escola, eu vou usá-la para fazer chaveiro, por exemplo? Não. Qual o uso pedagógico que o chaveiro tem? Nenhum”, exemplifica.
Na prática, os estudantes são convidados a não apenas consumirem tecnologia, mas também a produzi-la. Aqui entra o viés social e o papel do professor de incentivar produções capazes de solucionar problemas da sociedade. Um exemplo foi um protótipo de varal inteligente desenvolvido pelos estudantes pensando no problema que viam em casa. A engenhoca contava com sensores e motor para procurar, sozinha, uma área de abrigo sempre que começasse a chover.
Outra boa prática aconteceu em um trabalho interdisciplinar envolvendo Ciências e Geografia: os alunos realizaram uma espécie de censo na escola com o uso de chatbots produzidos por eles. Na ocasião, professores e estudantes puderam se aprofundar nas discussões sobre a grande presença de chatbots na sociedade atual, apontando suas facilidades e riscos.
“É importante que se entenda que a BNCC Computação não chega para formar programadores, mas sim ampliar a ação da escola, alinhando necessidades do mundo atual ao currículo escolar, refletindo sobre cultura, mídias, recursos tecnológicos e contribuindo para o fortalecimento do pensamento analítico”, afirma Daniele. Nessa reflexão, entram temas relacionados à educação midiática, à dependência tecnológica, ao uso crítico das redes sociais e plataformas de inteligência artificial e à produção tecnológica em prol de soluções para a sociedade.
O resultado das mudanças já é sentido em Sobral. “Tenho percebido que a habilidade de argumentação dos estudantes se ampliou. O desafio que o professor teve de transitar daquele que instrui para o que instiga também demandou dos alunos, que estavam acostumados à aula tradicional”, observa o professor Adones.
Como o professor pode se preparar para a BNCC Computação?
São três as demandas: adquirir conhecimentos práticos sobre o uso dos recursos tecnológicos, aprender como levá-los para a sala de aula de modo didático e saber promover discussões críticas sobre as ferramentas digitais.
Além das formações propostas pelas redes de ensino, algumas práticas podem ajudar a desenvolver essas competências. Confira algumas dicas:
Estar aberto: compreender os recursos tecnológicos, muitas vezes, vai além dos conhecimentos próprios da educação, entrando na Ciência da Computação. Por isso, o primeiro passo é se colocar disponível para novos aprendizados;
Conhecer as tecnologias: não é preciso ser um expert em programação para aplicar os conceitos da BNCC Computação, mas também não dá para fugir de conhecimentos básicos. É importante estudar um pouco sobre lógica de programação, buscando cursos livres ou materiais teóricos, e conhecer as ferramentas que pretende levar para a sala de aula;
Conhecer os estudantes: a tecnologia faz parte da vida dos alunos. Uma boa prática é conversar com eles e conhecer as plataformas que mais usam, os jogos preferidos e como é a relação da turma com os recursos digitais. Isso ajudar a escolher ferramentas que combinam com os gostos dos estudantes, ganhando a atenção deles;
Não usar a tecnologia só pela tecnologia: a intencionalidade pedagógica deve prevalecer, portanto, antes de escolher a ferramenta para potencializar determinado aprendizado, conheça-a a fundo.
Estudar: vale a pena se aprofundar em discussões não apenas técnicas, mas também políticas, éticas e sociais sobre o uso da tecnologia na sociedade atual. Isso ajuda a trazer um olhar mais crítico para a sala de aula, permitindo que os estudantes se apropriem de discussões próprias do eixo “cultura digital” da BNCC Computação;
Consultar a BNCC Computação: o próprio documento dá dicas sobre como levar as temáticas para a sala de aula, com um exemplo de atividade para cada habilidade. Isso ajuda a perceber que as competências propostas não exigem conhecimentos profundos de programação ou computação e podem ser desenvolvidas por meio de práticas simples.